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A estúpida banalização da maldade

Gaudêncio Torquato*
 
Qual a relação entre expansão da criminalidade e insatisfação social? Tudo a ver, seja na visão da corrente sociológica, seja na perspectiva da vertente econômica. A primeira argumenta que a queda da desigualdade entre classes diminui a insatisfação social, fazendo refluir a violência; a segunda levanta a hipótese de que o ganho com ações ilegais diminui ante o aumento da renda das famílias. Vejamos os dados de fundo: entre 2001 e 2011 a renda dos 10% mais ricos cresceu 16,6% e a dos mais pobres, 91,2%. A numerologia abriga, ainda, 19 milhões de empregos com carteira assinada e a estatística de 35 milhões de brasileiros que nos últimos dez anos ascenderam à classe média, hoje somando 52%, ou mais de 100 milhões de pessoas. Diante da evidência de que o País ganhou um dos maiores (e mais retumbantes) programas de distribuição de renda da contemporaneidade, restaria fechar o parágrafo com aplausos ao corolário: a violência diminui no Brasil graças ao aumento do Produto Nacional Bruto da Felicidade.
Verdade? Não. Sofisma.

A comunidade vive em clima de medo e insegurança. Por todo lado se multiplica a marca da violência. A viseira que embute satisfação não consegue esconder a coleção de crimes cometidos nos últimos tempos, que, pela inexcedível crueldade, puxam o Brasil para os primeiros lugares do ranking mundial da barbaridade. Basta ilustrar com casos que borram o maior cartão-postal do País, o Rio de Janeiro: o estupro de uma americana dentro de uma van e a agressão a seu namorado francês, o assalto a três turistas argentinas nos Arcos da Lapa e, mais recente, o estupro de uma mulher dentro de um ônibus por um jovem de 16 anos, flagrado por uma câmera de vídeo. Em São Paulo, expandem-se episódios de extrema violência, como o que vitimou há dias um empresário que meses antes tentara fazer um boletim de ocorrência sobre tentativa de assalto e foi tratado com descaso pelo delegado. Em Goiânia morreu a menina de 11 anos baleada ao tentar defender o pai durante briga numa pizzaria. A série criminosa é tão povoada de absurdos que
o Brasil começa a fazer parceria com a Índia, onde, recentemente, uma criança de 5 anos morreu após ser estuprada por dois homens.

O fato é que o roteiro de monstruosidades não combina com o retrato de bem-estar com o qual se procura apresentar o País. O que explica o clima de insegurança que permeia os mais diferentes espaços, das margens ao centro, quando as trombetas da administração fazem ecoar hinos ao conforto social resultante de um programa-símbolo de distribuição de renda? Ou será que, no caso da criminalidade, não se pode usar o termômetro da igualdade/desigualdade social para explicar o fenômeno? A questão causa polêmica e boa dose de contradição.

A PUC-Rio fez um estudo para o Banco Mundial em que mostra que a redução da desigualdade via Bolsa-Família foi a principal causa da diminuição da violência em São Paulo entre 2006 e 2009. A expansão do programa, segundo o pesquisador João Manoel Pinho de Mello, teria sido responsável por 21% do total da queda de criminalidade. Em 2012, porém, o número de homicídios em São Paulo cresceu 34% em relação ao ano anterior - 1.368 mortes versus 1.019. No quadro geral da criminalidade em todo o Estado, o incremento foi de 15%. Já no primeiro trimestre do ano, a capital registrou um aumento de 18% no número de homicídios dolosos, numa expansão que vem ocorrendo há mais de oito meses.

Diante da aparente contradição entre mais igualdade social e maior taxa de criminalidade, faz-se necessário colocar no caldeirão da violência outros ingredientes, a começar pela obsolescência do Código Penal, que escancara o descompasso entre a brutalidade de crimes e as penas brandas atribuídas. O mesmo se pode dizer do Estatuto da Criança e do Adolescente, que carece de atualização para acompanhar os avanços tecnológicos e o instrumental formativo/informativo que eleva as condições dos jovens. A par de problemas endógenos da estrutura policial - carência de casas de custódia e de presídios, mandados de prisão descumpridos, grau elevado de letalidade nas intervenções policiais, corrupção, etc. -, espraia-se pelo território o consumo de drogas e álcool, na esteira da massificação dos produtos identificados com diversão e ócio. Também a morosidade da Justiça leva à sensação de impunidade. E as brechas do sistema normativo contribuem para a banalização de atos ilícitos, que encontram terreno fértil para prosper
ar nas camadas mais pobres, particularmente entre os jovens. A extrema pobreza atinge, hoje, 12,2% dos 34 milhões de jovens brasileiros, cujas famílias auferem renda per capita de até um quarto do salário mínimo.

A conclusão é inescapável. O Brasil prepara-se com muito temor para sediar os dois mais importantes eventos esportivos da era moderna, Copa do Mundo e Olimpíada. A esta altura deveria empenhar-se para exibir a estética de seus estádios e cidades (como já faz a Rússia para 2018) e estender os braços do Cristo no Corcovado aos milhares de turistas que para cá se deslocarão, eis que feias nódoas mancham suas belas paisagens, gerando incertezas sobre a segurança dos visitantes. Sejamos realistas. Daqui a um ano é pouco provável que tenhamos um ambiente social mais harmônico e menos turbulento. Continuaremos a ser o país que concentra 3% da população e 9% dos homicídios no mundo. E que nos últimos 30 anos registra mais de 1,1 milhão de vítimas de homicídio. Não é de espantar que a onda de crimes cada vez mais hediondos esteja banalizada. Mataram mais uma criança? Ah! Estupraram mais uma moça? Oh! O pai assassinado deixou quatro filhos? Ih! Amanhã teremos mais.

*Jornalista. Professor titular da USP e consultor político e de comunicação”.

 
 

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