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A grande desculpa
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J.R. Guzzo para a revista
Veja |
O Brasil é um caso curioso, e
possivelmente único no mundo, de país que decidiu
combater a criminalidade reduzindo as penas para os
crimes.
O Brasil, e não apenas o Rio de Janeiro, está
colhendo nestes dias de guerra civil em miniatura nos
morros cariocas o que foi plantado pelas melhores
intenções de sua elite pensante, ou por suas dores de
consciência, ao longo dos últimos vinte anos. Foi
semeada a insensatez. Colhe-se agora, no Rio de Janeiro,
o seu resultado inevitável - ou, mais exatamente, um
banho de sangue por atacado, em vez do massacre a varejo
e em câmera lema que há tanto tempo tem feito parte da
vida diária das principais cidades brasileiras.
A origem do mal está na decisão mental, tomada
por juristas, legisladores, governos e pela maioria dos
que têm acesso aos meios de comunicação para pregar suas
opiniões, de que o crime não pode ser reprimido para
valer numa democracia; tem de ser entendido como
resultado das diferenças de renda, das injustiças
sociais, das desigualdades entre pobres e não pobres e
de tudo o mais que há de errado no Brasil.
Nessa visão da vida, uma coisa é certa:
a culpa
pela prática de crimes pode ser de todo mundo, menos do
criminoso. Ele seria, na verdade, uma vítima, ou quase
isso. Mata, rouba, estupra e viola o Código Penal do
primeiro ao último artigo porque “a sociedade”
praticamente o obriga a agir assim; é, no fundo, uma
espécie de legítima defesa. O resumo dessa maneira de
pensar está na sentença que o país já se cansou de
ouvir: “A culpa é de todos nós”. Somos nós, portanto,
que temos de mudar para diminuir a criminalidade não os
criminosos. A eles cabe esperar que as injustiças do
Brasil sejam eliminadas para, aí sim, mudar de conduta.
Os defensores da ideia geral de que o crime não
se combate com repressão, pois “problema social”, como
afirmam, “não é caso de polícia”, podem evitar o emprego
de uma linguagem igual à utilizada no parágrafo acima,
mas na essência o que estão dizendo é exatamente isso.
Mais do que dizer, fizeram - como mostra a evolução das
leis penais brasileiras durante as duas últimas décadas.
O Brasil é um caso curioso, e possivelmente único no
mundo, de país que decidiu combater a criminalidade
reduzindo as penas para os crimes, dentro do raciocínio
de que punições mais pesadas iriam na contramão da
moderna doutrina penal. Ao mesmo tempo, nesse período,
as leis ampliaram mais do que em qualquer outra época da
história brasileira os direitos dos que são acusados de
crimes; na fase da investigação, no estágio judicial e
até no regime penitenciário, nas ocasiões em que o
sistema consegue prender, processar, condenar e trancar
alguém na cadeia. Não importa o tipo de crime cometido,
por mais selvagem que seja - o réu tem direito a cumprir
apenas um sexto da pena, se for primário. Mesmo nos
crimes que a lei considera “hediondos” os condenados
fazem jus a esse benefício; o Congresso Nacional decidiu
que não deveriam fazer, mas o superior entendimento do
Supremo Tribunal Federal resolveu o contrário.
O fundamento dessa filosofia toda, ainda que não
seja admitido abertamente, está na crença de que o
princípio da responsabilidade individual é algo que se
tornou obsoleto ou só pode ser aplicado com restrições.
Segundo essa maneira de encarar a criminalidade, não é
justo considerar que cada cidadão, basicamente, é
responsável por aquilo que faz. Se ele é pobre, mora
numa favela ou não tem emprego, seria um dever da
sociedade tratá-lo de maneira diferenciada; a
responsabilidade pessoal, assim, só deve começar a
partir de um determinado nível de renda. Ao mesmo tempo,
há estrita vigilância sobre pontos de vista diferentes.
Dizer que a pobreza, por si mesma, não torna ninguém
mais virtuoso, nem dispensa quem quer que seja de
cumprir a lei, é visto como procedimento antipovo,
insensível e elitista. Para completar, toma-se a
impunidade cada vez mais agressiva que protege os
criminosos em atuação na vida pública, e de forma geral
todos os que têm dinheiro para se beneficiar de um
sistema judicial organizado sob medida para dificultar
ao máximo qualquer punição efetiva, como desculpa para
deixar tudo como está. Ou seja: em vez de esforços reais
para combater a impunidade nas classes de cima, a
solução mais democrática é estendê-la para as classes de
baixo.
Nessas horas, como comprovam os episódios do Rio,
é inútil esperar por luzes das lideranças nacionais, a
começar pela primeira delas. O Exército e a Marinha
estão na linha de frente das operações, mas o seu
comandante em chefe demorou para aparecer. Fez o de
sempre: esperou o sucesso se consumar e só então entrou
em cena.
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