Pessoas tendem a trabalhar mais e julgar menos quando vêem
seu reflexo.
Elas também tendem a formar uma imagem mental de si mais
atraente do que a realidade.
NATALIE ANGIER do New York
As pessoas há muito tempo têm fascinação por espelhos,
sendo um deles, central para uma obra de arte do século
XVII de Rubens. Elefantes asiáticos estão entre os poucos
animais que se re-conhecem em reflexos no espelho. Mas por
que o ser refletido obedece a regras tão absurdas?
Para o jovem Narciso, o do mito, o espelho virou uma
fantasia fatal e o lindo rapaz preferiu morrer em um lago
espelhado a ter que deixar seu “amado” para trás. Para o
narcisista maduro do 62º soneto de Shakespeare, o espelho
trouxe um golpe muito necessário à sua vaidade, a visão de
um rosto “usado e gasto por uma antigüidade castigada”
delineando os limites do amor-próprio.
Feitos de metal altamente polido ou de vidro com uma
camada de metal na parte de trás, os espelhos fascinam
seres humanos há milênios: egípcios da Antigüidade
freqüentemente eram retratados segurando espelhos de mão.
Com sua capacidade de refletir de volta praticamente
qualquer luz que incide sobre eles e de então recapitular
a cena, os espelhos são como pedaços de sonhos, suas
imagens são hiper-reais e profundamente falsas. Espelhos
revelam verdades que talvez não desejemos ver. Dê a eles
um pouco de fumaça e uma casa para chamarem de suas, e os
espelhos dirão somente mentiras.
Para cientistas, a simplicidade simultânea e a
complexidade dos espelhos os tornam ferramentas poderosas
para explorar questões sobre percepção e cognição em
humanos e outras espécies com neurônios, e como o cérebro
interpreta e age sobre as grandes ondas de informação
sensorial vindas do mundo externo.
Eles estão usando espelhos para estudar como o cérebro
decide o que é o ser e o que é o outro, como ele julga
distâncias e trajetórias de objetos, e como ele reconstrói
a rica característica tri-dimensional do mundo exterior a
partir do que é essencialmente uma fotografia
bidimensional tirada pela lâmina achatada de células
receptoras da retina.
Eles estão empregando espelhos na medicina, para criar
imagens refletidas de membros ou outras partes do corpo
de pacientes e assim enganar o cérebro para promover a
cura. A terapia com espelhos tem tido sucesso no
tratamento de distúrbios como síndrome do membro fantasma,
dor crônica e paralisia pós-derrame cerebral.
“De certa forma, espelhos são o melhor sistema de
‘realidade virtual’ que poderíamos construir”, afirmou
Marco Bertamini, da Universidade de Liverpool. “O objeto
‘dentro’ do espelho é virtual, mas até onde nossos olhos
entendem, o objeto existe como qualquer outro.” Bertamini
e colegas também estudaram o que as pessoas acreditam
sobre a natureza dos espelhos e imagens refletidas, e
descobriram que praticamente todo mundo, até estudantes de
física e matemática, têm percepções surpreendentemente
equivocadas.
Outros pesquisadores determinaram que espelhos podem
afetar sutilmente o comportamento humano, muitas vezes de
formas inesperadamente positivas. Descobriu-se que pessoas
analisadas em uma sala com um espelho trabalham mais, são
mais prestativas e têm menos tendência a trapacear, em
relação a grupos de controle desempenhando as mesmas
tarefas em ambientes sem espelho.
Conforme relataram no Journal of Personality and Social
Psychology, C. Neil Macrae, Galen V. Bodenhausen e Alan B.
Miln descobriram que pessoas em um ambiente com espelho
tiveram comparativamente menor tendência a julgar os
outros com base em estereótipos sociais como, por exemplo,
sexo, raça ou religião.
“Quando as pessoas são forçadas a terem consciência de si
próprias, têm maior tendência a parar e pensar sobre o que
estão fazendo”, disse Bodenhausen. “Um resultado dessa
consciência pode significar uma mudança, de agir no piloto
automático para adotar formas mais desejáveis de
comportamento”. O auto-reflexo físico, em outras palavras,
motiva a auto-reflexão filosófica, um curso intensivo
sobre o conceito socrático de que você não pode conhecer
ou apreciar os outros se não conhece a si próprio.
As técnicas com espelho nem sempre evitam que os joelhos
tremam. Quando se fala em formas socialmente aceitáveis de
estereotipar, disse Bodenhausen, como classificar todos os
políticos como ladrões ou todos os advogados como
mentirosos, a presença de um espelho pode acabar
aumentando em vez de conter a predisposição a rotular os
outros.
A relação entre autoconsciência e sociabilidade
desenvolvida pode ajudar a explicar por que algumas
espécies não-humanas que reconhecem a si próprias no
espelho são aquelas que têm vidas sociais complexas.
Nossos primos sociais hominídeos – chimpanzés, chimpanzés
pigmeus, orangotangos e gorilas – junto com golfinhos e
elefantes asiáticos, passaram no teste de
auto-reconhecimento no espelho, o que significa que,
diante de um espelho, eles irão analisar de perto marcas
que foram aplicadas em seus corpos. Os animais também irão
avaliar a própria higiene, checando sua boca, narinas e
genitais.
Ainda assim, nem todos os membros de uma espécie aprovada
no teste do espelho irão passar no exame. Segundo Diana
Reiss, professora de psicologia da Hunter College, que
estudou auto-reconhecimento em espelhos entre elefantes e
golfinhos, surpreendentemente, “animais criados em
isolamento não parecem demonstrar a habilidade de
auto-reconhecimento diante do espelho”.
Aliás, os humanos também não vêem necessariamente sua face
no espelho. Em um relatório intitulado “Mirror, Mirror on
the Wall: Enhancement in Self-Recognition," disponível no
site do The Personality and Social Psychology Bulletin,
Nicholas Epley e Erin Whitchurch descreve-ram experimentos
nos quais pessoas tiveram que identificar imagens de si
próprias entre uma série de rostos aleatórios. Os
participantes identificaram seus retratos individuais
significativamente mais rápido quando seus rostos foram
melhorados no computador para parecerem 20% mais
atraentes. Quando foram apresentados a imagens de si
próprios embelezados, alteradas para ficarem mais feios ou
sem nenhum retoque, eles também tiveram maior tendência a
afirmar que seu rosto original era a imagem retocada. Esse
“processo de Photoshop” internalizado não é simplesmente o
resultado de uma preferência generalizada pela beleza:
quando tiveram que identificar imagens de estranhos em uma
rodada subseqüente de testes, os participantes tiveram
desempenho melhor ao apontar os rostos sem retoques.
Como podemos ser tão auto-iludidos quando a verdade está
diante de nós? “Apesar de realmente vermos nossa própria
imagem no espelho todos os dias, não temos toda vez a
mesma aparência”, explicou Epley, professora de ciência
comportamental da University of Chicago Graduate School of
Business. Existe o eu-desarrumado-de-manhã, o
eu-arrumado-para-o-trabalho, o
eu-vestido-para-um-jantar-elegante. “Qual dessas imagens é
você?”, perguntou. “Nossa pesquisa mostra que as pessoas,
na média, resolvem essa ambigüidade a seu favor, formando
uma representação de sua imagem mais atraente do que elas
realmente são”.
Quando nos olhamos no espelho, nossa beleza relativa não é
a única coisa que julgamos mal. Em uma série de estudos,
Bertamini e seus colegas entrevistaram várias pessoas em
relação ao que elas acham que os espelhos mostram a elas.
Foram feitas perguntas como: “Imagine que você está diante
de um espelho de banheiro; que tamanho você acha que seu
rosto ocupa na superfície do espelho? E o que aconteceria
ao tamanho da imagem se você desse passos para trás,
afastando-se do espelho?”
As pessoas geralmente dão as mesmas respostas. Para a
primeira pergunta, eles dizem: “Bem, o contorno do meu
rosto no espelho teria praticamente o mesmo tamanho do meu
rosto. Para a segunda pergunta, é óbvio: se eu me afasto
do espelho, o tamanho da minha imagem diminui a cada passo
para trás.”
Acontece que ambas as respostas estão erradas. Faça o
contorno do seu rosto em um espelho e você descobrirá que
ele tem exatamente a metade do tamanho do seu rosto
verdadeiro. Dê quantos passos para trás você quiser, e o
tamanho do contorno oval do seu rosto não vai mudar: ele
permanece com a metade do tamanho do seu rosto (ou a
metade de qualquer parte do corpo que você olhe), mesmo
quando a cena de fundo refletida no espelho muda
gradualmente. Outra coisa importante: essa regra da
metade do tamanho não se aplica à imagem de outra pessoa
se movendo no ambiente. Se você se ficar parado diante do
espelho, e um amigo se aproxima ou se distancia, o tamanho
da imagem da pessoa no espelho irá crescer ou diminuir,
como manda nosso senso natural.
O que acontece com nosso eu refletido que obedece a regras
tão absurdas? O importante é que não importa o quanto você
esteja perto ou longe do espelho, o espelho sempre está na
metade do caminho entre nosso ser físico e nosso ser
projetado no mundo virtual dentro do espelho, então a
imagem capturada no espelho corresponde à metade do nosso
tamanho real.
Rebecca Lawson, que colabora com Bertamini na Universidade
de Liverpool, sugere o seguinte. Imagine que você tem um
irmão gêmeo idêntico, que vocês dois têm 1,80m e que vocês
estão em pé em um ambiente com uma divisória móvel entre
vocês. Que altura uma janela na divisória deveria ter
para permitir que você veja o seu irmão por inteiro, em
seus 1,80m?
A janela deve permitir que chegue até você luz de cima da
cabeça do seu irmão gêmeo e debaixo do pé dele, disse
Lawson. Essas duas fontes de luz começam a 1,80m de
distância e convergem nos seus olhos. Se a divisória está
perto do seu irmão gêmeo, os pontos de luz mais alto e
mais baixo acabam de convergir, então a abertura da janela
deve ter quase 1,80m de altura para permitir que você
tenha uma visão de corpo inteiro do seu irmão gêmeo. Se a
divisória está próxima a você, a luz praticamente acaba
de convergir, então a janela pode ser bem pequena. Se a
divisória está na metade do caminho entre você e seu irmão
gêmeo, a janela teria que ter cerca de 0,90 cm.
Oticamente, o espelho é similar, disse Lawson, “exceto que
em vez de a luz vir do seu irmão diretamente através da
janela, você vê a si próprio no espelho com uma luz da sua
cabeça e do seu pé sendo refletida no espelho em direção
aos seus olhos.”
O espelho é uma divisória cuja posição não podemos mudar.
Quando olhamos para um deles, todos nós somos Narciso,
eternamente presos à nossa cópia que está do outro lado.
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