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E a malandragem?

J. R. Guzzo para a Revista Veja

 
O Brasil vem se tornando, nos últimos anos, uma espécie de paraíso mundial da tapeação.

O grande responsável por mais essa realização nacional é o governo, ou quem manda no governo, com o desenvolvimento de técnicas cada vez mais avançadas e eficientes para convencer a opinião pública de que coisas que todo mundo está vendo não existem - ou que existem coisas que ninguém consegue ver.

Isso ajuda, e muito, todas as vezes que aparece uma história feia, que o governo quer esconder, ou quando ele decide fabricar uma história bonita, para mostrar méritos que não tem.

Quase sempre a plateia acredita na mágica, bate palmas e diz, nas pesquisas de popularidade, que o governo é ótimo - ou, então, não mostra maior interesse no assunto, nem nas fábulas que a propaganda oficial está lhe contando.

Não acredita nem desacredita; apenas não liga. O resultado é que o Brasil, hoje em dia, se transformou num dos países onde é mais fácil para o governo passar qualquer tipo de conto do vigário no público em geral.

E a célebre "malandragem brasileira", onde foi parar? O brasileiro, segundo rezam as nossas lendas, mitos e folclore, gosta de se imaginar no papel do sujeito esperto. (O locutor esportivo Galvão Bueno, homem de reconhecida competência em identificar com exatidão o que o público gosta de ouvir, diz que todo jogador da Seleção Brasileira de Futebol, do goleiro ao ponta-esquerda, é "malandro", sobretudo quando o Brasil está ganhando; é um dos seus maiores elogios.)

Mas, se o brasileiro é tão esperto assim, por que está sempre no papel do otário em todo relacionamento que tem com o governo? Por que o ex-presidente da República, por exemplo, tem certeza de que vão acreditar nele quando diz que o mensalão, um dos casos de corrupção mais bem comprovados da história brasileira, simplesmente não existiu? Deveria acontecer o contrário, justamente: o povão, com todo o seu jogo de cintura, não se deixaria enganar por uma conversa dessas.

A explicação para o fenômeno pode ter sido sugerida da trinta anos atrás, talvez, pelo samba Homenagem ao Malandro, de Chico Buarque de Holanda.

O compositor nos conta, ali, que quis fazer uma homenagem "à nata da malandragem"; foi então à Lapa, mas perdeu a viagem, porque descobriu que "aquela tal malandragem não existe mais".

A triste verdade, diz a canção, é que o malandro, agora, é um pobre coitado que "trabalha, mora lá longe e chacoalha num trem da Central".

Em compensação, esclarece o compositor, "já não é normal o que dá de malandro regular, profissional, malandro com aparato de malandro oficial". Este aí, sim, conclui o samba: "Nunca se dá mal". Os malandros trocaram de lugar, então? Deve ser isso.

O fato é que vão se multiplicando em ritmo cada vez mais rápido, e com audácia cada vez maior, as histórias milagrosas para explicar todo tipo de coisa que não tem explicação. O clima, no fim, acaba ficando cômico.

Uma das demonstrações mais recentes disso foi dada pelo ex-presidente Lula - um dos catedráticos na matéria, sem dúvida. Na sua atual carreira de palestrante para grandes empresas, que a cada negócio fechado o faz subir mais um degrau no mundo dos milionários brasileiros, Lula fez uma conferência para a Tetra Pak, multinacional do ramo de embalagens; recebeu, pelas informações disponíveis, 200000 reais.

Não se trata, Deus nos livre, de "consultoria" do tipo que acaba de levar o ex-ministro Antonio Palocci à sua segunda ruína; é só palestra, certo? Mas acabou surgindo, nesse caso da Tetra Pak, uma questão enjoada: a empresa pediu ao ex-presidente que conseguisse uma redução de impostos para as embalagens de leite, e ele se comprometeu a tratar do assunto "com o companheiro Mantega".

Estaria certa uma coisa dessas - um ex-presidente receber dinheiro de uma empresa e advogar para que ela pague menos imposto? Perguntado, Lula disse que estava batalhando para "levar leite de qualidade para a casa das pessoas".

Ou seja, ele pede a todos que acreditem no seguinte: seu real interesse não foi receber os 200000 da Tetra Pak, nem atender ao pedido da empresa; o que realmente queria era ajudar o povo a comprar leite. Qual é o problema? Alguém aí vai duvidar?

Palocci, como se sabe, caiu pelo conjunto da obra, mas um dos seus piores momentos foi meter-se numa história de devolução de impostos para uma construtora. Deve haver alguma diferença com o caso da Tetra Pak, claro. Qualquer hora dessas talvez nos digam qual é.


 

 

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