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Em defesa do Muro de Berlim
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"Sem sua derrubada,
onde as cores, onde o movimento, onde a emoção de que
carecem os grandes eventos da história - o assassinato
de César, a queda da Bastilha?"
Que bom que o Muro de Berlim foi construído. Se
não tivesse sido construído, não teria sido destruído.
E, se não tivesse sido destruído, como assinalar no
curso da história, da maneira vistosa e dramática que
merece, esse evento capital que foi o desmoronamento do
mundo comunista? Com que cenário? Com que povo? Com que
artefato, concreto como um muro, contra o qual investir?
Ainda bem que existem os eventos simbólicos a marcar a
marcha da história. Sem eles, estaríamos condenados aos
"processos", essas fluidas cadeias de circunstâncias
políticas, relações sociais, estados psicológicos,
oscilações econômicas, percepções e acidentes que,
temperadas por inevitáveis doses de acaso, conduzem a
corrente da história, de forma frequentemente
misteriosa, para este ou aquele leito. Atos como a
derrubada do muro que dividia a antiga capital do Reich
dão visibilidade à história. Servem de farol contra a
falta de rosto, de cor e de volume dos "processos".
A derrubada do Muro de Berlim é evento da mesma
natureza da queda da Bastilha. Claro que não foi a
investida contra a mal-afamada fortaleza da Rua
Saint-Antoine, em Paris, ainda mais que àquela altura já
andava meio desativada, como prisão, e não continha
senão sete escassos prisioneiros, que determinou a
Revolução Francesa. Mas, sem o episódio da Bastilha,
como dar corpo e - de fundamental importância - como dar
uma data ao conjunto de transformações ocorrido naquele
período da vida francesa? A própria história brasileira
contém um exemplo similar - o "independência ou morte"
das margens do Ipiranga. O evento salvou o advento da
independência do destino de, submerso num mar de
"processos", apresentar-se sem corpo e sem data. Os atos
simbólicos têm o efeito de agarrar o tempo e forçá-lo a
uma parada, majestosa e densa como uma escultura. Eles
dão inteligibilidade à história da mesma forma como a
sucessão das estações dá inteligibilidade ao ano.
A queda do Muro de Berlim, no dia 9 de novembro
de 1989, permitiu que, na semana passada, houvesse uma
festa na capital alemã e comemorações pelo mundo afora,
pelos vinte anos da data. Sem ela, como comemorar a
derrocada do império soviético e as tiranias do Leste
Europeu? Uns indicariam as greves conduzidas na Polônia
pelo movimento Solidariedade de Lech Walesa. Outros se
inclinariam para as manifestações que compuseram a
"Revolução de Veludo" da Checoslováquia. Mas qual das
greves e qual das manifestações, se foram várias? Mais
seguro seria apontar para o dia da ascensão de Mikhail
Gorbachev à secretaria-geral do Partido Comunista - 11
de março de 1985. Mas, se foi possível a Gorbachev
ascender ao mais alto cargo da hierarquia soviética, e
junto com ele o impulso reformista que fermentava no
interior do regime, é porque algum tipo de fissura já
minava a carapaça do poder comunista.
E minava mesmo. A União Soviética já não tinha
fôlego para sustentar a corrida armamentista imposta
pela concorrência com os Estados Unidos. Além disso,
via-se num atoleiro sem saída em seu envolvimento
militar contra os talibãs do Afeganistão. Além disso, já
ficara irremediavelmente para trás do Ocidente nas
conquistas tecnológicas. Além disso, seu sistema
econômico mostrava-se pateticamente incompetente no
provimento dos bens de consumo de que carecia a
população. Pronto. Estamos no emaranhado de fios que
tecem os "processos", e tantos fios acharemos quanto
mais nos detivermos a procurá-los. O historiador inglês
Timothy Garton Ash lembrou a "lei da cornucópia
infinita", formulada por outro historiador, o polonês
Leszek Kolakowski. Para qualquer evento, segundo a lei
de Kolakowski, é possível encontrar um número infinito
de explicações.
Onde, se nos atemos aos processos, a cenografia,
onde as cores, onde o movimento, onde a emoção de que
carecem os grandes eventos da história - o assassinato
de César, o martírio de Joana d’Arc, a batalha de
Waterloo? Precisamos de teatro, esta é que é a verdade,
como de ar para respirar. Dai-nos uma cena e com ela
marcaremos o tempo, de forma a tirá-lo da uniformidade
sem graça e sem sentido de seu fluxo contínuo. No campo
das miudezas cotidianas, o momento do "parabéns a você"
é o teatro que assinala a passagem de mais um ano de
vida. No campo das grandiosidades históricas, o muro
forneceu o cenário, e as pessoas que trepavam em cima
dele, dançavam e lhe arrancavam pedaços, num misto de
levante e festa popular, compuseram a dramaturgia de que
carecia um evento do porte da queda da fortaleza
comunista.
Roberto Pompeu de Toledo para a revista Veja |
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