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Estão querendo enganar quem?
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João Ubaldo Ribeiro para o Jornal
O Estado de São Paulo
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Li em algum jornal que a Fifa, essa
organização da qual volta e meia se evola um odorzinho
de mutreta, que lida com cachoeiras de dinheiro, cujas
decisões são às vezes vistas como fruto de processos
viciados e que, enfim, não é nenhuma casa pia, ameaçou
fazer a Copa de 14 na Espanha, se as obras aqui não
forem apressadas - ou até mesmo iniciadas, como dizem
que é o caso de muitas. Por artes do caprichoso destino,
isso pode interessar à Espanha, que tem estrutura e está
pendurada. Pode interessar a toda a Europa, aliás,
devido ao reflexo dos problemas espanhóis na economia do
euro. E talvez o Brasil nem conseguisse ir aos jogos,
porque os espanhóis poderiam aparelhar os aeroportos
para otimizar sua já tradicional deportação de
brasileiros.
Apressar as obras significa, como também se
divulga muito, relaxar controles sobre custos e gastos.
Claro, qualquer que seja o resultado dos debates, todo
mundo sabe que haverá roubo. Se for feita uma enquete,
tenho certeza de que a grande maioria dos brasileiros
acredita que vai haver roubo nessas obras, com sigilo,
sem sigilo, de que forma for. Existirá sempre um jeito
de roubar, entendido isto como faturamento fraudulento,
propinas, desvios de materiais e serviços e, enfim, todo
tipo de trambique aplicável, num repertório em que
seguramente somos líderes mundiais.
Sim, todo mundo está cansado de saber disso.
Então para que tanta complicação inútil, se tudo vai ser
mesmo garfado, sempre foi, desde que nos entendemos e
ninguém tem problemas ao ganhar dinheiro desse jeito? Há
tantos estádios a construir, tantos aeroportos a
reformar, tantas obras públicas, tantas armações que
podiam já estar rendendo grana e ficamos nessa demora
ridícula, repetindo atos ou palavras que nunca
resolveram nada. Tanto o que surrupiar já dando sopa aí
e esse pessoal perdendo tempo em formalidades que todo
mundo sabe que não servem para nada, a não ser para
embalar o sono dos que as ouvirem, em forma de
discursos, no Senado Federal. Não havia nem necessidade
da mãozinha que a Fifa está querendo dar (ou meter).
É difícil assistir a um noticiário de televisão
em que não seja mostrado o desbaratamento e prisão (e
imediata soltura, em questão de segundos) de pelo menos
uma quadrilha que fraudava algum órgão público. Difícil,
não, impossível; não me recordo de nenhum. Se qualquer
político for acusado de ladrão numa roda de conversa,
dificilmente alguém o defenderá com convicção, porque
confere com o padrão que nos acostumamos a aplicar à
nossa sociedade. Nenhum tipo de falcatrua ou sordidez
nos surpreende e é bastante comum que, nessas conversas,
alguém lembre uma história bem pior.
E os parlamentares, se não são todos ladrões em
sentido amplo, são beneficiários impudentes de uma
abundância obscena de privilégios, a começar pelo
imoralíssimo foro especial, que os põe numa acintosa
classe acima dos governados, a quem não prestam
satisfações e cuja vontade ignoram, se não coincide com
seus interesses. Há sentido nas miríades de "ajudas",
nos fantásticos seguros de saúde, nas generosíssimas
viagens e em tudo mais de que desfrutam para mal e pouco
trabalhar, isto quando trabalham? Os estrangeiros têm
dificuldade em compreender como uma sociedade aceita
esse deboche deslavado, que ainda lhe é impingido com
arrogância e ostentação de poder. Não acho de todo
descabida a semelhança que vejo entre esses privilégios
e os da corte de Luís XIV, na França do século 18. De
fato, como já disse aqui, o Estado entre nós não é o
rei, que não temos; mas o Estado entre nós é dos
governantes e a soberania é deles, respeitados os donos
da economia.
No serviço público, a falta de compostura e o
nepotismo, embora hoje disfarçado pelos intrincados
laços familiares dos brasileiros, são a regra. O que é
público não é de ninguém, começando pelo material de
escritório levado para casa e terminando pelos cartões
corporativos. Ocupantes de cargos públicos de relevância
se associam secretamente a empresas de "consultoria" e
assim ganham fortunas, fazendo na verdade advocacia
administrativa e tráfico de influência. Egressos do
serviço público caem na mesma prática, pois o serviço
público aqui não é para o público, mas para quem o
presta, ou alega prestar. O serviço público é uma
oportunidade para "se fazer". Comportam-se assim até os
menos rapineiros, que se contentam em "colocar" um filho
aqui ou acolá, ou bem encaminhar seu futuro depois da
política, apesar de já bastante acolchoado por
aposentadorias magnânimas e benesses liberais.
E ninguém, afinal, é punido por nada. Se antes
isso se aplicava somente aos ricos e poderosos, agora
vale para todos. A melhor maneira de matar alguém no
Brasil é ficar bêbado, pegar o carro e atropelar a
vítima. Aí o atropelador se recusa a usar o bafômetro e
vai para casa, responder a processo em liberdade, para,
no caso difícil de vir a ser condenado, cumprir a pena
também em liberdade. Embriaguez pode até virar
atenuante, surto psicótico. Matar gente, aliás, é cada
vez mais fácil, talvez mais que roubar. Matar bicho nem
tanto, mas pega mal o sujeito sair dizendo que está sob
a proteção do Ibama.
É por essas e outras que eu digo: vamos parar com
essa enrolação toda, que chega a nem ficar bem, parece
sabotagem com a Seleção. Não já estamos exaustos de
saber que, em ocasiões semelhantes, meteram a mão na
granolina para valer? Não é assim que se faz e sempre se
fez neste país, como costumava lembrar um grande líder
nosso? Então vamos liberar logo essa grana e sossegar a
rapaziada, corrupto também fica estressado. E, afinal de
contas, não somos assim tão bestas, pensam que estão nos
enganando, mas não estão. Nós sabemos de tudo e não
somos bobos, somos apenas omissos, submissos, cínicos e
cada vez mais moralmente insensíveis - ninguém é
perfeito. |
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