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Inversão perigosa de papéis

 | 01/11/2007
 

As empresas estão tomando para si a responsabilidade por serviços "públicos", como educação e saúde -- e essa é uma distorção perigosa

Por Ana Luiza Herzog
para a revista Exame

No final de 2006, 240 alunos do terceiro ano do ensino médio do Centro de Ensino Experimental Ginásio Pernambucano, localizado em Recife, prestaram vestibular. Todos os estudantes passaram. Metade deles conquistou uma vaga numa das três melhores instituições de ensino superior do estado -- a Universidade Federal de Pernambuco, a Universidade de Pernambuco e a Universidade Católica de Pernambuco. Os outros 120 estudantes foram aprovados em universidades privadas de menos renome. O que torna esses números surpreendentes é o fato de que esses jovens se formaram numa escola pública. Em sua maioria, eles vêm de famílias cuja renda mensal não supera dois salários mínimos. Até o início desta década, seria impossível pensar que os estudantes do Ginásio Pernambucano, como é localmente conhecido, pudessem ter esse desempenho. Primeiro, porque a própria sede da escola, uma construção histórica e imponente tombada pela Unesco, estava literalmente caindo aos pedaços -- a situação era tão crítica que, por segurança, os alunos haviam sido transferidos para outro prédio. Em segundo lugar, porque a qualidade do ensino que ali se praticava deixava muito a desejar, para dizer o mínimo. "Como na maioria das escolas públicas, o Ginásio Pernambucano tinha altas taxas de evasão e repetência", afirma Thereza Barreto, diretora do colégio desde 2004.

No início do ano 2000, porém, um plano de resgate para salvar as instalações e a qualidade da educação oferecidas pela escola foi colocado em prática. A ação foi encabeçada pelo pernambucano Marcos Magalhães, que até abril de 2007 ocupou o cargo de presi-dente da Philips para a América Latina e desde então dedica-se à presidência do conselho da operação brasileira. Sensibilizado pela decadência da escola onde estudaram os escritores Ariano Suassuna e Clarice Lispector (além dele próprio), Magalhães conse-guiu recursos da Philips e de outras empresas, como Odebrecht, ABN Amro e Chesf, para restaurar o prédio. A reforma, que custou cerca de 2,5 milhões de reais, começou em 2000 e levou dois anos para ser concluída. A iniciativa de Magalhães e das empresas envolvidas nessa história só pode ser louvada -- uma escola capaz de preparar alunos para o vestibular é muito melhor que uma instituição decrépita. Errado é achar que o preenchimento do vácuo deixado por um Estado que arrecada impostos para suprir as demandas sociais pela iniciativa privada seja algo normal ou desejável. "As doações e os serviços sociais prestados pelas empresas não devem substituir a ação que os governos de nações que se julgam avançadas devem prover à população", afirma Robert B. Reich, professor de políticas públicas da Universidade da Califórnia.

Ex-secretário do Trabalho durante o governo Bill Clinton, Reich reacendeu o debate sobre a responsabilidade social das empresas no recém-lançado livro Supercapitalism -- The Transformation of Business, Democracy, and Everyday Life (em tradução livre


"Supercapitalismo -- A transformação dos negócios, da democracia e da vida cotidiana", ainda não lançado no Brasil). Na obra, ele discorre sobre o enfraquecimento do sistema democrático nos Estados Unidos e no resto do mundo nos últimos 30 anos e, sobretudo, sobre o risco de a população acreditar que as empresas vão resolver os grandes dilemas que o planeta vive hoje. Como o economista Milton Friedman, Reich acredita que a responsabilidade das empresas é apenas dar lucro -- e que a saúde e a educação dos cidadãos são um problema do Estado.

No Brasil, a polêmica sobre o papel das empresas e do Estado ganha contornos mais dramáticos. "No mundo todo as empresas se adaptam ao Estado que têm, e as nossas se adaptaram a um que não funciona", diz Marcos Kisil, presidente do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), ONG que ajuda companhias de todo o país a estruturar projetos sociais. "Nenhuma empresa quer substituí-lo, mas simplesmente corrigir as ineficiências que as impedem de funcionar." O perigo, segundo uma corrente de especialistas da qual Reich faz parte, é que a população e o próprio governo se convençam de que, ao assumir projetos ligados a áreas como saúde, educação ou segurança, as empresas não estão fazendo mais do que sua obrigação. Assim como é obrigação de todos pagar seus impostos em dia. Trata-se de um risco real. Um levantamento da consultoria Market Analysis Brasil mostra que 65% da população acredita que cabe às em-presas resolver questões de impasses sociais -- o índice mais elevado entre os 25 países pesquisados (veja quadro ao lado). "Existe uma cobrança exagerada em cima das empresas e ela é estimulada pelo próprio governo", afirma Wilberto Luiz Lima Junior, diretor de responsabilidade social da Klabin. "A questão é que pagamos impostos e já compartilhamos nosso lucro com centenas de funcionários que recebem salários e benefícios e que, com isso, movimentam a economia." Em outras palavras, como mostra a pesquisa, no Brasil os papéis estão cada vez mais embaralhados.

dinheiro privado para fins publicos grafico

ESSE CENARIO COLOCA AS EMPRESAS NUMA SINUCA: se não aceitam resolver questões sociais, são malvistas por consumidores e pelas comunidades; se tomam para si essa tarefa, podem acabar com bombas-relógio nas mãos. Driblar esse impasse exige um planejamento cuidadoso. Em janeiro de 2005, a subsidiária brasileira da Unilever decidiu "adotar" o município de Araçoiaba, no estado de Pernambuco, onde possui quatro fábricas.
A meta da multinacional anglo-holandesa era articular uma série de ações para elevar o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), indicador usado pelas Nações Unidas para avaliar a qualidade de vida de uma região. À época, o IDH de Araçoiaba Araçoiaba era um dos mais baixos do estado. Para minimizar os riscos, desde o início a Unilever definiu regras claras para o projeto. Ele se encerraria em dezembro de 2007 (prazo que poderia ser prorrogado por, no máximo, mais um ano), consumiria 3 milhões de reais da empresa e, o mais importante, não deveria suplantar o papel do Estado. "No início, a população passou a nos ver como solução para todos os problemas e, se deixássemos, a prefeitura nos colocaria mesmo para atuar em todas as frentes", diz Elaine Molina, gerente de responsabilidade social da empresa. A estratégia foi condicionar a entrega de benfeitorias à mobilização da comunidade e do poder público. Para ganhar uma escola nova, por exemplo, a prefeitura teve de ajudar a Unilever a alfabetizar 2 000 pessoas. "Estabelecer esse tipo de relação de barganha é saudável e evita que o poder público se isente de sua responsabilidade", diz a americana Christine Letts, especialista em filantropia e liderança para instituições sem fins lucrativos da Universidade Harvard.

expectativas demais

Em dezembro deste ano, como planejado, a Unilever deixará Araçoiaba. O IBGE deverá medir o IDH da cidade em dezembro e divulgá-lo ao longo de 2008. "Como trabalhamos muito nas áreas de saúde, educação e geração de renda, temos certeza de que vamos conquistar nossa meta", afirma Elaine. Para terminar o projeto com a certeza de que não gastou dinheiro ou energia em vão, a Unilever tomou alguns cuidados. Um deles foi estimular a aprovação de uma lei municipal para que o Centro de Saúde Infantil, no qual a empresa investiu 120 000 reais, receba mensalmente uma verba do governo capaz de garantir seu futuro. Com ajuda do centro, que atende crianças de zero a 5 anos e gestantes, o município conseguiu reduzir drasticamente a mortalidade infantil. Em janeiro de 2005, de cada 1 000 bebês que nasciam em Araçoiaba, 36 morriam antes de completar 1 ano de vida. Em dezembro de 2006, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, a taxa havia sido reduzida para seis. A mesma estratégia de blindagem foi usada por Marcos Magalhães para garantir a perenidade do projeto educacional para os alunos de ensino médio. Ele conseguiu que duas leis estaduais fossem aprovadas. Uma regulamentou o modelo de 19 escolas que, assim como o Ginásio Pernambucano, passaram a funcionar em horário integral. A outra lei regulamentou a criação de um departamento dentro da Secretaria Estadual de Educação, com autonomia técnica, administrativa e financeira para gerir essas escolas.
 
Segundo o americano Reich, criar regras claras e formais que definam o papel do Estado e da iniciativa privada é premissa fundamental. O estabelecimento desse código de conduta não apenas ajudaria a minimizar o jogo de empurra-empurra entre as partes como ainda evitaria que as empresas usassem as ações de responsabilidade social como peça de marketing -- atitude que, segundo ele afirma em seu livro, está se tornando cada vez mais comum. Reich não é o único a desconfiar das boas ações propagadas pelas empresas. Numa recente reportagem da revista Business Week, a real envergadura das iniciativas frente à crise ambiental do planeta foi questionada pelo ambientalista Auden Schendler. Cria do Rocky Mountain Institute, renomada instituição ambiental sediada em Aspen, Schendler foi contratado em 1999 para ser o executivo de sustentabilidade do Aspen Skiing Company, um dos resorts de inverno mais luxuosos do mundo. Oito anos depois, ele continua no posto -- mas se diz desanimado. Schendler afirma que não tem mais a convicção de que as empresas estão realmente dispostas a fazer sacrifícios, mesmo que haja retorno no longo prazo, para atuar de maneira ambientalmente correta. "Implementei um monte de projetos vistosos, mas não consegui fazer o que me propus", afirmou ele à revista. Um desses fracassos está relacionado à diminuição do consumo de energia elétrica. Segundo Schendler, a empresa preferiu comprar novos equipamentos para os praticantes de esqui a reformar velhas acomodações do hotel que gastam muita energia. Robert Reich e Auden Schendler podem até ser considerados céticos radicais. O mundo em que vivemos continuará a colocar na balança as atitudes das empresas diante da sociedade e do meio ambiente. Mas pode ser ingênuo e até arrogante achar que as corporações podem tomar conta do mundo. Assim como pode ser irresponsável agir como se o Estado -- legitimado por nós mesmos -- nada mais tenha a ver com os pro-blemas que estão aí.

"As empresas só existem para dar lucro"

| 01.11.2007

O ex-secretário do Trabalho de Bill Clinton Robert B. Reich diz que o movimento de responsabilidade corpo-rativa é uma farsa

EXAME

Na economia que prevalece hoje no mundo, que o senhor batizou de supercapita-lismo, não há empresa socialmente responsável ou virtuosa?

Não. Empresas não são pessoas. Elas não têm uma bússola moral e existem para um único propósito: oferecer boas oportunidade para os consumidores como forma de maximizar o lucro para os acionistas. Esperar que elas façam qualquer coisa que não seja isso é acreditar numa ilusão.

Estamos então sendo enganados pelas empresas?

É claro. As empresas gastam milhões em relações públicas e passamos a acreditar que elas têm personalidade, que são boas ou más, que são instituições criadas para atingir fins públicos. Elas não são. Na prática, elas estão dando passos muito pequenos e não vão sacrificar o retorno aos acionistas em prol de um bem social.

Então o movimento de responsabilidade social é uma falácia?

Esse movimento distrai as pessoas do problema real e mais difícil, que é limpar e aperfeiçoar a democracia. Shows de responsabilidade corporativa levam os cidadãos a acreditar que os problemas sociais estão sendo endereçados e que eles não precisam se preocupar em fazer com que a democracia funcione e dê respostas para os dilemas. Eu não tenho objeções às ONGs pressionarem uma ou outra empresa para agir de certa maneira. O que elas não devem fazer é achar que essas pressões são substitutos para leis e regulamentações. As doações e os serviços sociais prestados pelas empresas, por exemplo, não devem substituir aqueles que os governos de nações que se julgam avançadas devem prover à população. Quando políticos louvam ou culpam companhias, eles dão ainda mais fôlego para essa noção equivocada.

Como assim?

Google, Microsoft e Yahoo! tiveram de se apresentar a um comitê parlamentar no ano passado por terem ajudado a China a reprimir os direitos humanos. Os deputados criticaram ferozmente em público os executivos, mas não fizeram nada mais. A população foi levada a acreditar que alguma coisa aconteceria. O que os políticos deveriam e poderiam fazer, se realmente quisessem mudar o comportamento dessas empresas, era passar uma lei proibindo as companhias americanas de cooperar com a China.

Apesar das críticas de hoje, o senhor já foi um entusiasta da responsabilidade social corporativa. O que o fez mudar?

Pregava essa doutrina antes de o mundo entrar no supercapitalismo. Há 35 anos era possível que uma companhia fosse socialmente responsável porque seus presidentes tinham muita autonomia. Hoje eles não têm mais. Empresas que lá atrás eram reconhecidas por sua ação socialmente responsável, como The Body Shop e Levi's, foram atropeladas pelo acirramento da competição e perceberam que não podiam se dar ao luxo de sacrificar o lucro em prol de uma causa social.

E hoje o senhor defende empresas como o Wal-Mart ...

O Wal-Mart já foi alvo de muitas críticas, porque paga salários baixos, espreme fornecedores e destrói o pequeno varejo. Mas a empresa está simplesmente sendo conduzida por consumidores -- que querem pagar o menor preço possível pelos produtos -- e por investidores -- que querem ganhar mais a cada trimestre. O Wal-Mart segue as regras do jogo.

No Brasil, de acordo com pesquisas, há muita expectativa dos cidadãos em relação às empresas resolverem questões sociais. Qual sua opinião sobre isso?

É um mito perigoso esse de que as companhias vão resolver problemas sociais por conta própria. A não ser que elas sejam induzidas ou forçadas. Por que o fariam? Elas fazem apenas o mínimo para garantir sua reputação. Se os brasileiros estão desiludidos com a falta de habilidade do governo em fazer o que precisa ser feito, eles precisam concentrar seus esforços diretamente no governo. As empresas não vão preencher as lacunas sociais do país.

 

 

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