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O mundo da fantasia de
Saddam
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Estudo mostra que
assessores, por medo e conveniência, sempre mentiram
para ele sobre o poderio iraquiano.
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Lourival Sant'Anna para o
jornal O Estado de São Paulo
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O comportamento de Saddam
Hussein antes e durante a guerra do Iraque foi
intrigante. Nos meses que precederam a guerra, Saddam se
manteve ambíguo em relação à posse ou não de armas de
destruição maciça, fornecendo o pretexto desejado pelo
presidente George W. Bush para esmagá-lo. Depois, diante
da invasão iminente, Saddam preparou suas Forças Armadas
para não defender o Iraque, numa atitude visivelmente
autodestrutiva.
Afinal, o que tinha em mente o ditador iraquiano? Passados
mais de três anos de sua queda, finalmente surge uma
explicação bem articulada e documentada. Depois da
tomada de Bagdá, em abril de 2003, o Comando Conjunto
das Forças Armadas dos EUA (USJFCOM) encomendou um
estudo abrangente sobre os processos de tomada de
decisão e as informações com que trabalhava o círculo
íntimo do poder em torno de Saddam. Uma equipe de cinco
especialistas em assuntos de defesa entrevistou dezenas
de militares em funções de comando e dirigentes
políticos do regime iraquiano, e estudou centenas de
informes, memorandos, diretrizes e decretos.
As conclusões foram resumidas num artigo redigido por três
integrantes da comissão: o analista de defesa Kevin
Woods, o analista militar James Lacey, que trabalha para
o USJFCOM, e Williamson Murray, professor de história da
Academia Naval dos EUA. Publicado na edição deste
bimestre de Foreign Affairs, periódico do centro de
estudos independente Conselho de Relações Exteriores, o
artigo contém um relato vívido do que se passava na
cabeça de Saddam e de seus auxiliares mais próximos.
Lembra-se de Muhamad Said al-Sahaf, o ministro de
Informação iraquiano - aquele que fazia rir a todo o
mundo com seus briefings diários à imprensa
pateticamente desconectados da realidade, e que chegou a
desmentir que as tropas americanas tivessem entrado em
Bagdá, enquanto os tanques rolavam na avenida atrás do
prédio onde ele dava sua coletiva? Pois bem. Os relatos
e documentos demonstram que Saddam acreditava naquele
mundo fantasioso descrito por Al-Sahaf.
Os informes que chegavam à mesa do ditador, repletos de
floreios para paparicá-lo (veja ao lado), contavam um
monte de mentiras sobre vitórias e proezas inexistentes,
enquanto batalhões inteiros debandavam assim que o ronco
dos tanques e aviões americanos se fazia ouvir. O
comando militar iraquiano estava apenas seguindo um
padrão. Muito antes de iniciada a guerra, já se
habituara a esconder os problemas de Saddam e a
pintar-lhe um quadro róseo sobre o estado de suas
degeneradas Forças Armadas.
O motivo era uma mescla de medo e conveniência. Ou, numa
palavra: sobrevivência. Os comandantes militares e
auxiliares civis de Saddam se condicionaram ao seu
sistema de castigar exemplarmente quem se atrevia a
discordar de suas posições, e de premiar quem lhe
louvava a sabedoria e o obedecia cegamente. Saddam, que
na infância foi ferozmente menosprezado pelos outros
meninos por ser órfão de pai, filho de prostituta e
enteado de ladrão, confundia bajulação com lealdade.
Na cultura que criou em seu entorno, más notícias eram
identificadas como desafio a sua autoridade. Isso porque
todas as decisões importantes, nos campos militar e
civil, eram tomadas por ele. Se algo não ia bem, esse
dado de realidade punha em xeque a sabedoria de suas
decisões. Como quase nada ia bem no Iraque isolado
econômica e politicamente desde a invasão do Kuwait em
1991, o mais prudente era abandonar a realidade. Foi
assim que se fabricou um cenário para o ditador, no qual
ele superestimou o poderio militar iraquiano, subestimou
o americano e ainda se baseou numa leitura fraturada do
ambiente internacional.
Nas entrevistas, o ex-vice-primeiro-ministro Tariq Aziz
contou que Saddam estava "muito confiante" de que os EUA
não ousariam atacar o Iraque e de que, se o fizessem,
seriam derrotados. Em análises brindadas aos assessores,
Saddam afirmava que a França e a Rússia, com poder de
veto no Conselho de Segurança, evitariam uma resolução
de uso da força contra o Iraque - como de fato evitaram
-, por causa dos contratos que seu governo lhes havia
proporcionado.
A isso, o então comandante das Forças Armadas, general
Ibrahim Ahmad Abd al-Sattar, acrescenta que, se os EUA
enveredassem por uma ação unilateral e lançassem ataque
por terra - como de fato fizeram -, Saddam calculava que
os americanos rapidamente se curvariam diante da pressão
internacional para parar a guerra.
Já segundo seu intérprete pessoal, Saddam afirmava que
suas forças "superiores" imporiam uma "resistência
heróica e infligiriam baixas tão enormes nos americanos
que eles interromperiam o avanço". Nas palavras de
Saddam: "O Iraque não será, de modo algum, como o
Afeganistão. Não deixaremos a guerra se tornar um
piquenique para os soldados americanos e britânicos. De
jeito nenhum!"
O otimismo de Saddam estava fundado no pavor dos que o
cercavam em lhe dizer a verdade, combinado com as
benesses que obtinham por mantê-lo iludido. "Discordar
diretamente das idéias de Saddam Hussein era
imperdoável", recorda um ex-ministro. "Seria suicídio."
Com a agravante de que ele gostava de se cercar de
auxiliares medíocres, que não o fizessem sentir-se
ameaçado.
Até mesmo seu filho Qusay lhe mentia nas situações mais
prosaicas. No fim de 2000, Saddam soube que 70 veículos
militares estavam enguiçados. Encarregou a Guarda
Republicana, comandada pelo filho, de supervisionar os
reparos. Terminado o prazo para os consertos, os
veículos, pintados, com aparência de novos em folha,
foram alinhados em duas filas, e 70 motoristas deram a
partida. Nenhum motor pegou. Quando lhe relataram o
fiasco, Qusay instruiu os subordinados a não deixar que
a informação vazasse para o pai.
Esses relatos tornam verossímil uma história que circulou
na época da Guerra do Golfo, em 1991. Durante uma
reunião com Saddam, um dos chefes militares teria
advertido que a invasão do Kuwait poderia ter
conseqüências funestas. O ditador se levantou e mandou
que o oficial o seguisse para uma saleta contígua.
Voltou só, ajeitando a pistola na cintura. O militar
nunca mais foi visto.
Na escalada para o confronto com os EUA, Saddam resolveu
criar uma versão iraquiana de "guerra nas estrelas" (o
projeto multibilionário do governo Reagan de armas
ultra-sofisticadas). Para isso, foi criada a Comissão
Militar Industrial, custeada com 1,5% do PIB iraquiano.
Num informe obtido pelos investigadores, a comissão
informava que, entre 2002 e 2003, estavam em andamento
mais de 170 projetos. Na verdade, nada estava sendo
desenvolvido. Sempre que Saddam perguntava pelos
resultados, os membros da comissão improvisavam desenhos
e protótipos, inteiramente inócuos.
Obcecado com a própria permanência no poder, num ambiente
político que lhe parecia continuamente ameaçador,
Saddam, que confiava a si mesmo as decisões de
estratégia, doutrina e armamento de suas forças,
priorizava a supressão de insurreições internas, em
detrimento da defesa do país de uma invasão externa.
Depois dos levantes xiita e curdo de 1991, o ditador criou
grupos paramilitares, como os Fedayeen (combatentes) de
Saddam, o Exército de Al-Quds (o nome árabe de
Jerusalém), que chegou a ter 500 mil homens, e as
milícias do seu Partido Baath. Esses exércitos
particulares drenavam os recursos das Forças Armadas
convencionais.
"A força Al-Quds era uma dor de cabeça. O Ministério da
Defesa era obrigado a lhe dar armas que eram tiradas do
Exército de verdade", queixa-se o então ministro da
Defesa, general Sultan Hashim Ahmad. "Mas o Exército não
tinha controle algum sobre eles. Suas instruções vinham
apenas do gabinete do presidente, e não por meio de
canais militares normais."
Os militares profissionais iraquianos não tinham autonomia
para exercer o comando e contole. Com a autoconfiança
reforçada pela bajulação dos auxiliares, Saddam se
considerava cada vez mais um gênio militar, e se metia
nos detalhes até da preparação física dos soldados. Em
documento dirigido às unidades de elite, ele recomenda
que os soldados pratiquem natação e escalada de
palmeiras.
As interferências amadorísticas no trabalho dos
comandantes profissionais culminaram no planejamento da
defesa diante da invasão americana iminente. Para
assombro dos comandantes da Força Aérea iraquiana,
Saddam ordenou que ela não participasse da defesa, mas
sim que enterrasse os seus caças na areia, com receio de
que fossem bombardeados no solo pelos americanos. Como
estava certo de que a invasão americana não prosperaria,
Saddam queria conservar seus caças para esmagar
possíveis rebeliões internas no pós-guerra e manter o
equilíbrio de forças com o vizinho Irã, para onde, numa
estratégia semelhante, havia enviado parte de seus
aviões militares, antes da guerra de 1991. "Os iranianos
estão ainda mais fortes do que antes", observou Saddam.
"Eles agora têm (parte de) nossa Força Aérea."
Igualmente, os comandantes da Guarda Republicana, a força
de elite, foram surpreendidos pela apresentação da
estratégia de defesa por Qusay, cuja experiência militar
se resumia a uma rápida participação na guerra contra o
Irã em 1984. Tratava-se de um mapa no qual figurava
apenas a região em torno de Bagdá, rodeada por quatro
anéis, de cores diversas. "Pensei que fôssemos defender
o Iraque", disse para si mesmo um comandante. Pois o
plano, já aprovado por Saddam, consistia em ir recuando
para os anéis menores, toda vez que as forças americanas
se aproximassem, até se concentrarem todas as unidades
em torno de Bagdá, para "lutar até a morte" em sua
defesa.
Boquiabertos com o primarismo do plano, os comandantes não
moveram uma palha para executá-lo. O resto da história é
conhecido. Para defender Bagdá, só sobraram os fedayeen,
pessoalmente tão identificados com Saddam que lutavam
para salvar a própria pele. Sem lugar num Iraque
pós-Saddam, até hoje eles formam o núcleo duro da
resistência antiamericana.
Nos dias que sucederam à queda de Saddam, em Bagdá,
especulava-se que o ditador tivesse fugido, com uma
carga de ouro, para a Síria, num comboio de diplomatas
estrangeiros, e daí talvez para a Suíça. Não foi o caso.
Saddam foi encontrado num buraco, como um animal, em
dezembro de 2003. A prova cabal de sua auto-ilusão:
outrora temido e celebrado por sua astúcia e ousadia,
ele simplesmente não tinha um Plano B.
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