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O milagre do sorinho e
outros milagres |
Roberto Pompeu de Toledo
para a Revista Veja |
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A doutora Zilda Arns fez tudo ao
contrário de como costumam ser feitos os programas de
políticas públicas no Brasil. Não chamou o marqueteiro,
como providência inaugural dos trabalhos. Não engendrou
uma generosa burocracia, capaz de proporcionar bons e
agradáveis empregos. Não ofereceu contratos milionários
aos prestadores de serviço. Sobretudo, não anunciou o
programa e, com o simples anúncio, deu a coisa por feita
e resolvida. Milagre dos milagres, Zilda Arns, que
morreu na semana passada, no terremoto do Haiti, aos 75
anos, realmente fez. Se o Brasil teve uma redução
significativa nos níveis de mortalidade e desnutrição
infantil, nas últimas décadas, isso se deve em primeiro
lugar à Pastoral da Criança, criada e administrada por
ela, com apoio da Igreja Católica, e aos exemplos que
semeou.
O índice de mortalidade infantil no Brasil andava
pelos 82,8 mortos por 1 000 nascidos vivos, em 1982,
quando Zilda foi convocada pelo irmão, o cardeal Paulo
Evaristo Arns, então arcebispo de São Paulo, a pôr sua
experiência de médica pediatra e sanitarista a serviço
de um programa de combate ao problema. Hoje está em 23,3
por 1 000. Nas áreas com atuação direta da Pastoral da
Criança - são 42 000 comunidades pobres, espalhadas por
4 000 municípios brasileiros - está em 13 por 1 000. O
que mais espanta, na obra de Zilda, é o contraste entre
a eficácia dos resultados e a simplicidade dos métodos.
Nada de grandiosos aparatos, nada de invencionices. A
partir da gestão do hoje governador José Serra no
Ministério da Saúde, ela passou a contar com forte apoio
governamental. Mas suas ferramentas básicas continuaram
as mesmas:
• O sorinho e a multimistura. O soro caseiro
feito de água, açúcar e sal foi o grande segredo no
combate à desidratação, por muito tempo a maior causa de
mortalidade infantil no Brasil. A multimistura feita de
casca de ovo, arroz, milho, semente de abóbora e outros
ingredientes singelos foi, e continua sendo, a arma
contra a desnutrição. Zilda Arns era contra a cesta
básica. Achava-a humilhante, para quem a recebia, e de
presença incerta. Optou por ensinar como proporcionar
uma boa dieta com recursos escassos.
• A multiplicação da boa vontade. A ordem era
ensinar e fazer com que os que aprendiam passassem
também a ensinar. A Pastoral da Criança conta hoje 260
000 voluntários.
• O trabalho e a persistência. Se fosse só
ensinar a tomar o sorinho ou a multimistura e ir embora,
seria repetir outro padrão das políticas públicas à
brasileira. Cabe ao voluntariado fazer uma visita por
mês às famílias assistidas. Um instrumento
imprescindível nessas ocasiões é a balança, para medir a
evolução da criança.
• A escora da índole feminina. Noventa e dois por
cento do voluntariado da Pastoral da Criança é
constituído por mulheres. Uma tarefa dessas é séria
demais para ser deixada por conta dos homens. A mulher é
muito mais confiável quando se mexe com assunto situado
nos extremos da existência, como são os cuidados com o
nascimento e a morte, a saúde e a doença.
Zilda Arns conduziu-se por uma estratégia baseada
na sabedoria antiga e na vontade de fazer, nada mais do
que isso. É paradoxal dizer isso de uma pessoa tão
religiosa, mas não houve milagres na sua ação. A menos
que se considere um milagre a presença dessa coisa
chamada amor como motor, tanto dela como das pessoas em
quem ela inoculava o mesmo vírus. Vai ver, ela diria
isso. Vai ver, isso foi importante, mesmo.
O escritor Saul Bellow conta que, certa vez,
passeava de bote num rio infestado de jacarés quando
começou a ficar apavorado. Não era tanto a morte que o
apavorava. Era o necrológio: "Morreu ontem, devorado por
jacarés…". Zilda Arns está condenada ao necrológio:
"Morreu de terremoto, no Haiti". Não é esdrúxulo como
ser devorado por um jacaré. Também não é raro como cair
no poço do elevador, como a atriz Anecy Rocha, irmã de
Glauber, ou ser tragado pela boca do Vesúvio, como o
republicano histórico Silva Jardim. Mas é raro para um
brasileiro, em cujo território não ocorrem terremotos de
proporções mortais, e chocante como são as mortes
inesperadas, provocadas por acidentes. Zilda Arns, como
Anecy Rocha e Silva Jardim, morreu em circunstâncias do
tipo que nunca se esquece. Mas, também, em
circunstâncias que lhe coroam a vida. Estava no Haiti
para, em contato com religiosos locais, propagar a
metodologia da Pastoral da Criança. Morreu em combate. |
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