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Um mundo escuro
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Por J. R. GUZZO – Diretor
da Revista Veja |
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Está cada vez mais difícil, em nosso
mundo de hoje. encontrar inocentes. No exato momento em
que estiver lendo estas linhas, o leitor poderá muito
bem estar sendo culpado pela prática de algum delito
sério, mesmo que não saiba disso - e provavelmente não
sabe. Como poderia saber? As noções de certo ou errado,
de bem ou mal ou de justo e injusto, cada vez mais, são
definidas por dezenas de "causas", em relação às quais é
indispensável estar do lado correto. E que lado é esse?
É o lado dos donos ou dos militantes dessas causas -
tarefa complicada, considerando-se que elas se
multiplicam sem parar, não têm conexão nenhuma entre si
e sua própria existência, muitas vezes. É completamente
desconhecida do público em geral. Com o desmanche cada
vez mais rápido de qualquer valor ou princípio na
atividade política, e o falecimento da ideia geral de
"direita" e "esquerda", o campo do "bem" vai sendo
ocupado por movimentos que defendem ou condenam todo
tipo de coisa. Importa cada vez menos, também, o divisor
de águas formado pelo conjunto de valores morais como
integridade, decência, gratidão, generosidade, honradez,
cortesia e tantos outros que marcavam a correção do
indivíduo, do ponto de vista pessoal, na vida de todos
os dias. O cidadão, hoje, pode ser tudo isso ao mesmo
tempo, mas ainda assim não será inocente basta não
concordar com as bandeiras em voga, ou ser indiferente a
elas, ou não saber que existem.
Todas essas cruzadas se declaram proprietárias
exclusivas do bem e têm, cada vez mais, a certeza de que
a lógica, os argumentos baseados em fatos e o livre
debate devem ceder lugar à fé - a fé dos dirigentes e
militantes das "causas", que se julgam moralmente
superiores e portanto, autorizados a exigir que todos
abram mão do seu direito a raciocinar e simplesmente
concordem com eles. O lado escuro disso tudo é que a
defesa de tais bandeiras está se tornando cada vez mais
fanática - e o resultado é a criação, pouco a pouco, de
um novo totalitarismo. Nega-se as pessoas o direito de
discordar de qualquer delas e, principalmente, de
criticar seja lá o que proponham; não é permitida nem a
simples neutralidade, pois quem é neutro é considerado
cúmplice do mal.
Os efeitos práticos são muito parecidos com os que se
produzem nas ditaduras - e sua primeira vítima é a
liberdade de pensar e de exprimir o que se pensa.
Muito de todo esse ruído é simplesmente cômico; além
disso, ao contrário do que acontece nas tiranias, os
líderes das novas causas não têm a seu dispor a força
armada para obrigar o público a obedecer a suas
decisões. Mas. em ambos os casos, sua atividade está
gerando cada vez mais consequências na vida real. Ainda
há pouco, um anúncio da agência AlmapBBDO mostrava um
gato preto subindo no capô de um Volkswagen, numa
brincadeira 100% inocente a respeito de sorte e azar.
Ideia proibida, hoje em dia. Grupos que defendem a causa
dos gatos, de qualquer cor, decidiram que o comercial
estimulava a "perseguição" e o "desrespeito" ao gato
preto, e exigiram da empresa que o comercial fosse
retirado do ar. Ganharam: a Volkswagen, uma das maiores
companhias do mundo, com mais de noventa fábricas.
550.000 empregados e faturamento superior a 200 bilhões
de dólares em 2012, ficou com medo do pró-gato e topou,
sim, cancelar o anúncio. Há uma coisa muito parecida com
isso - ela se chama censura. A AlmapBBDO, uma das
agências de publicidade mais respeitadas do Brasil,
queria levar o comercial ao público, como a imprensa
queria publicar notícias durante a ditadura militar. Mas
a cruzada dos gatos, como acontecia na época em que o
governo cortava as notícias que lhe desagradavam, não
quis. Nas duas situações uma pela força bruta, a outra
pela pressão bruta - o resultado prático é o mesmo:
aquilo que deveria ter sido publicado não o foi. Qual é
a diferença?
Episódios como esse vão se tornando comuns e, para
piorar as coisas, deixam atrás de si uma nuvem
radioativa que contamina o ambiente do pensamento e faz
com que as pessoas fujam das áreas de perigo. É muito
pouco provável que a AlmapBBDO volte a criar comerciais
com algum gato no enredo, ou qualquer outro animal. Para
quê? Outras agências vão tomar, ou já tomaram, a decisão
de cortar o reino animal do seu universo criativo e
também, por via das dúvidas, o reino vegetal e o reino
mineral, pois é possível que provoquem objeções dos
movimentos que atribuem direitos civis às árvores, ou às
pedras, ou sabe-se lá ao que mais. Os jornalistas e os
órgãos de imprensa, com frequência, vão pegando uma
alergia cada vez maior a tratar de certos assuntos.
"Isso vai dar confusão", ouve-se todos os dias nas
redações. "Melhor a gente ficar fora dessa." O mesmo se
aplica a políticos, por seu natural pavor de perder
votos, a artistas que não querem ficar mal "na classe" e
a mais um caminhão de gente capaz de ter posições clara
s, mas incapaz de arrumar coragem para falar delas em
público.
É apenas natural que a situação tenha ficado assim. Não
vale a pena, para a maioria, dizer o que pensa e ser
imediatamente amaldiçoado como racista, cruel com os
animais, homofóbico, nazista, destruidor da natureza,
inimigo da fauna e da flora, poluidor de rios, lagos e
mares, vendido aos interesses das "grandes empresas",
carrasco das "minorias", assassino de bagres e por aí
afora. Ser um mero defensor da luz elétrica, e achar
natural, para isso, que sejam construídas usinas
geradoras de energia passou a ser, no código da "causa
ambiental", um delito grave. Pior ainda é ser chamado de
"agricultor" ou "pecuarista" - as duas palavras passaram
a ser utilizadas pelos militantes como um puro e simples
insulto. Eis aí. por trás de todo o seu verniz de
atitude moderna, democrática e defensora da virtude, a
essência do totalitarismo que vai sendo imposto pelas
"causas" do bem. O alicerce central de sua postura é
raso e estreito: "Ou você pensa como eu. ou você é um
idiota; ou você pensa como eu. ou você está errado"
. Ou você é coisa ainda muito pior, dependendo do grau
de ira que sua opinião despertou neste ou naquele
movimento.
Se discordar, por exemplo, de uma mudança na lei
trabalhista, vão acusá-lo de ser a favor da volta da
escravatura. Se criticar a doação de latifúndios a
tribos de índios, pode ser chamado de genocida. Se achar
errado o Bolsa Família, vai ser condenado como defensor
da miséria. Se sustentar que o sistema de cotas para
negros nas universidades tem problemas sérios, vira um
racista na hora. Se julgar que os governos do PT são um
exemplo mundial de incompetência, ignorância e vigarice,
será incluído na lista negra dos que são contra o povo,
contra a pátria e contra as eleições. Falar mal do
ex-presidente Lula, então, é um caso perdido. Como ele
diz em seus discursos que o seu segundo objetivo na vida
é governar para os pobres (o primeiro, segundo uma
confissão que fez há pouco, é "viver o céu aqui mesmo na
terra"), quem não gosta do ex-presidente só pode ser
contra os pobres. A alternativa é ouvir que você, até
hoje, não se conforma com o fato de que "um operário
tenha chegado à Presidência" etc. etc., como o pró
prio Lula nos diz todo santo dia. há mais de dez anos.
Com certeza há pessoas boníssimas, e sinceramente
interessadas no bem comum, na maioria das "causas" em
cartaz hoje em dia não lhes passaria pela cabeça,
também, imaginar que estão construindo um mundo
totalitário. Mas sua recusa em raciocinar um pouco mais,
e em agredir a lógica um pouco menos, acaba levando-as,
mesmo que não percebam, a uma postura de autoritarismo
aberto diante da vida. A modelo Gisele Bündchen, por
exemplo, propõe nada menos que uma "lei internacional"
obrigando todas as mulheres a amamentar seus filhos.
Gisele pode ser mesmo uma devota dessa postura, mas, ao
querer que sua opinião pessoal seja transformada em
"lei", ela mostra uma outra devoção: o desejo de mandar
no comportamento dos outros. E as mulheres que não
querem amamentar - como ficam os seus direitos? Qualquer
pessoa que quer nos impor uma escolha forçada, diz o
psicanalista Contardo Calligaris, de São Paulo.
provavelmente está interessada, acima de tudo, em
"afirmar e consolidar seu poder sobre nós".
Um outro tóxico que alimenta essa marcha da insensatez é
a ignorância. Somada à decisão de atirar primeiro nos
fatos, e perguntar depois quais eram mesmo esses fatos,
leva a episódios de circo como o movimento "Gota d'Água"
- no qual um grupo de atores e atrizes tentou
demonstrar, no fim de 2011, que a usina de Belo Monte
seria uma catástrofe sem precedentes para o Rio Xingu e
para a ecologia brasileira cm geral. No vídeo que
gravaram com o propósito de provar suas razões,
confundiram o Pará com Mato Grosso, colocaram a usina a
mais de 1 000 quilômetros do lugar onde está sendo
construída e denunciaram a inundação de terras ocupadas
por índios quando não há um único índio na área a ser
alagada. Foi um desempenho digno de entrar na lista das
piores respostas do Enem. Mas os artistas continuam
achando que estão certíssimos: sua "causa" é justa,
dizem eles, e meros tatos como esses não têm a menor
importância. pois o que interessa é o triunfo do bem.
"Não há expediente ao qual o homem deixará de recorrer
para evitar o real trabalho de pensar", disse, no fim
dos anos 1700. o grande mestre da arte inglesa do
retrato, sir Joshua Reynolds. Hoje, mais de 200 anos
depois, sua tirada é um resumo praticamente perfeito da
turbina-mãe que faz girar a máquina das "causas" justas.
Nada as incomoda tanto quanto o ato de pensar. Preferem
receber insultos, porque podem responder com insultos -
o que não toleram é a tarefa de raciocinar em cima de
fatos, reconhecer realidades e convencer pelo uso da
inteligência. Algum tempo atrás esta revista publicou,
com a assinatura do autor do presente artigo, um
conjunto de considerações sobre o que julgava serem
exageros, equívocos ou distorções do chamado "movimento
gay". Tudo o que foi escrito ali recebeu uma fenomenal
descarga de ódio. histeria e ofensas, nas quais foram
incluídas diversas maldições desejando uma morte rápida
para o autor. Mas o que realmente deixou a liderança gay
fora de si, acima de qualquer outra coisa, foi
a afirmação de que casamento de homem com homem, ou de
mulher com mulher, não gera filhos. É apenas um fato da
natureza mas é exatamente isso, o fato, o pior inimigo
das "causas". Não pode ser anulado por abaixo-assinados.
redes sociais ou passeatas. A única saída é mantê-lo
oculto pelo silêncio.
Por essa trilha, caminhamos para um mundo de escuridão. |
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